Você estaria aberto(a) a compartilhar seu conhecimento num ambiente onde não há segurança psicológica?
Por Raquel Balceiro, D.Sc.
Continuando a discussão iniciada no artigo anterior, eu queria te fazer uma provocação: o que te leva a confiar em alguém, a colaborar e compartilhar seu conhecimento?
Colaboração (do Latim com- “com” + laborare “trabalhar”) é o processo em que duas ou mais pessoas, entidades ou organizações trabalham juntas para completar uma tarefa ou atingir um objetivo. Para tal, elas precisam confiar entre si. Como já vimos anteriormente aqui, existem alguns motivos que levam as pessoas a colaborar e compartilhar o seu conhecimento, certamente motivadas por uma cultura de incentivo a este compartilhamento.
Para tal, o clima organizacional precisa sustentar um ambiente no qual as pessoas tenham interesse em agir dessa forma, por saberem que ao compartilhar suas ideias, elas não serão usurpadas por seus colegas, por entenderem que cada integrante do time saberá valorizar a contribuição dos demais, e por perceberem, por experiência própria, que poderão contar com os colegas quando precisarem. Um ambiente baseado na segurança psicológica certamente propicia este compartilhamento.
Mas, nem sempre isso acontece. Vamos analisar um exemplo de equipe onde não há confiança para expor uma opinião?
Como o clima organizacional pode atrapalhar o compartilhamento de conhecimento entre um time
Vamos analisar uma situação que vivi há muitos anos e que reflete um momento no qual a segurança psicológica não prevaleceu e acabou por trazer consequências para todo o time.
Eu era consultora interna e estava trabalhando com a equipe, da qual eu fazia parte, no desenvolvimento de uma metodologia que seria disseminada para toda a empresa. No meu julgamento, todos tinham espaço para contribuir e dar a sua opinião sobre o trabalho e seu andamento. Sendo assim, as contribuições e divergências eram bem vindas durante todo o processo.
Às vésperas da apresentação do resultado daquele trabalho para a Comissão de Gestão do Conhecimento, convoquei a equipe para apresentar o que tínhamos e fazer os ajustes finais, quando um dos colegas esperou que eu terminasse de falar, e me disse que não tinha gostado, que “não concordava com nada daquilo”.
Eu me lembro de ter ficado muito surpresa (e um pouco indignada com a falta de timing). E de tê-lo perguntado: “Do que você não gostou? O que você sugere então?”
Minha preocupação é que não havia mais tempo, nosso prazo havia se esgotado, e ele tinha tido tempo e espaço para falar sobre aquela Metodologia (a “entrega”) antes daquele fatídico dia.
Mais surpreendente ainda foi a resposta que ele me deu: “Não sei do que eu não gostei, só sei que não gostei. E não tenho sugestões a dar”.
Lembro-me de ter levantado e saído, mas não sem antes dizer a ele e aos demais: “Se não há sugestões, vamos ficar com o que temos, porque a apresentação é amanhã”.
E encerrei o assunto. A apresentação foi realizada, as pessoas da Comissão gostaram do que viram, os demais colegas saíram satisfeitos, mas a minha relação com aquela pessoa ficou um pouco arranhada.
Analisando o meu comportamento tempos depois, percebi que poderia ter tentado extrair dele informações valiosas que revelassem do que ele não tinha gostado. Eu poderia ter feito algumas perguntas que fossem conduzindo a discussão, mas, ao mesmo tempo, consigo entender por que não o fiz:
- Imaginei que ele teve tempo para se debruçar sobre o trabalho e sugerir modificações que teriam sido analisadas por todos ao longo do projeto;
- Avaliei (equivocadamente, talvez?!) que ele não estava interessado em contribuir, já que não se esforçou em dizer do que não havia gostado. Estava apenas interessado em evitar que o projeto fosse apresentado à Comissão;
- Supus (e aqui, este verbo é importante) que ele não estava tão preocupado com o prazo do projeto quanto eu, que o estava coordenando.
Num time no qual (a) há segurança psicológica, e que seja verdadeiramente um espaço (b) no qual as pessoas se sentem livres para assumir riscos interpessoais e colocar na mesa que discordam de uma solução apresentada, (c) no qual pode-se, de fato, inovar e propor ideias diferentes, não há espaço para tantas suposições (como eu fiz) e o meu colega em questão estaria coberto de razão em dizer que não gostou.
Talvez ele pudesse ter se dedicado em dizer do que não gostou, mas eu nunca deveria tê-lo tolhido daquele jeito (sim, estou assumindo aqui uma falha minha). Reforçando o meu compromisso de escrever com autenticidade e, muitas vezes, revelando a minha vulnerabilidade, reconheço que não agi como seria esperado de uma consultora. Como ressaltaria Brené Brown, neste momento eu falhei miseravelmente. Isso pode ter se refletido no restante do time, que pode não ter concordado com ele e, principalmente, pode não ter concordado comigo, por eu ter encerrado a reunião daquele jeito, e se manteve em silêncio. Já vivi a situação oposta, na qual uma simples pergunta que fiz levou uma pessoa a encerrar uma reunião e sei que não é nada confortável. Problemas de comunicação acontecem, e os mais experientes precisam estar conscientes de que ambientes frutíferos devem ser tratados com o devido cuidado, inclusive para que mal-entendidos sejam rapidamente desfeitos. Então, preciso reconhecer que me faltou este cuidado.
Nossas ações muitas vezes falam mais do que aquilo que dizemos.
Quando se é livre para falar o que pensa, as pessoas assumem o risco de dizer que “não gostaram de algo” e, quem sabe, mudar o rumo de uma decisão para um outro caminho, divergir de uma ideia, trazer à tona um assunto que é sensível para o grupo — como era aquele assunto, visto que o nosso “deadline” se aproximava –, contribuir com pontos de vista diferentes, sem sentir medo de ser julgado ou de sofrer uma retaliação. Fico pensando se ele já não vinha percebendo algo errado na metodologia, em como ela estava sendo desenhada e se só demorou a falar porque, em nenhum outro momento, percebeu abertura do time para ouvi-lo. A gente se considerava, naquela época, uma equipe muito engajada e colaborativa, mas talvez não fôssemos tanto quando pensávamos ser.
Essa confusão é natural. Muitas vezes, temos a impressão de que estamos em um ambiente de segurança psicológica, mas na verdade estamos oscilando entre um ambiente paternalista e explorador. Vamos ver a diferença?
Clark (2023) chama a atenção para os ambientes onde prevalece o paternalismo e/ou a exploração e que são igualmente nocivos. No primeiro caso, a pessoa se acostuma com uma situação extrema de paternalismo, e começa a adotar uma postura de não ter que se preocupar com a decisão sobre algo, porque sabe que tem alguém para decidir por ela. Quando lhe dizem constantemente o que fazer, você se acostuma, aos poucos, e acaba se tornando passivo e inseguro de si mesmo, a ponto da autossuficiência se tornar uma perspectiva assustadora. Você procura por conforto mais do que por liberdade, por segurança mais do que independência. Então, demorar a dizer que não está gostando de algo, ou até mesmo não dizer — porque a responsabilidade, afinal, não é sua — acaba sendo um comportamento normalizado, ainda que não ideal.
Já a exploração surge com a promessa de um benefício futuro, seja uma promoção ou uma função gerencial. A pessoa ganha liberdade, mas a ela é exigido um esforço e uma dedicação acima do que é necessário ou remunerado no intuito de que ela prove sua fidelidade ao líder e a empresa. Muitas vezes, é neste momento que a organização se vale desta fidelidade para praticar um tipo de assédio moral que exige do trabalhador uma dedicação 24h/dia, tendo que estar o tempo todo disponível, principalmente on-line. A falta de sugestões, neste caso, se dá porque o empregado passa a entender que quanto mais ele sugerir, mais tarefas terá que assumir (“Sugeriu? Então faz!”).
É como se a gente tivesse um limite tênue, nestes ambientes, para atuar com segurança psicológica e pudesse “escorregar” de um lado ou do outro, entre o paternalismo e a exploração, como se pode ver no gráfico a seguir.
Brenda ENDO (2024) destaca a importância de detectarmos, em nossas relações, quando há dificuldade de ter conversas difíceis, sinceras e honestas, como aquela que o meu colega tentou ter, mas eu, com pressa em dar o caso por encerrado, não criei espaço para que acontecesse. Na verdade, estávamos todos imersos em uma cultura de valorização do ego, na qual o que importava era como seríamos avaliados, julgados pela Comissão, vistos pelos superiores e, por isso, apresentávamos baixa disponibilidade de entrega verdadeira com os membros daquele time.
Para que possamos colaborar efetivamente, precisamos abrir mão do ego e entender o resultado do trabalho como coletivo.
Em retrospecto, vejo que, para um time que se supunha de alto desempenho, havia muita tensão, competição, apatia e insegurança por “debaixo dos panos”, o que nos impediu de dar a devida atenção àquele alerta. O trabalho foi aprovado pela Comissão, mas me pergunto, ele não poderia ter sido um trabalho muito melhor se o tivéssemos escutado? Não sei se adotei essa postura ou comportamento para me afirmar diante do time, mas percebi, com o tempo, que eu não precisava ser assim.
Hoje, depois de muitos anos, entendo também que eu sofria um medo terrível do viés de gênero, que definia o que esperavam de mim (uma mulher!): que eu cuidasse, acolhesse, fosse compassiva e maternal com aquele time. E eu era, na verdade, uma pessoa racional, assertiva, firme e comprometida, um comportamento que era considerado “masculino”, e que me levou a ser taxada de “braba” na época, inclusive pelo colega em questão.
O viés de gênero é um Viés de Percepção, que ocorre quando as pessoas acreditam e legitimam um estereótipo, sem base concreta em fatos, mas apenas baseadas na “crença pela crença”. Ou seja, algumas pessoas podem acreditar que as mulheres são menos capazes dos que os homens, mesmo sem ter conhecimento de como é aquela mulher no ambiente de trabalho, não havendo aprofundamento do conhecimento em relação a estes fatos.
Sendo assim, naquele momento, me olhando com as lentes atuais, depois de tudo o que eu já aprendi, era muito pouco provável que eu fosse acolher aquela resposta e tentar descobrir — naquele momento — quaisquer motivos de descontentamento.
Nos dias de hoje, eu poderia ter usado inúmeras técnicas de perguntas e respostas, como o Thinking Envinroment [1] e o Diálogo Socrático [2], para tentar extrair dele mais alguma informação.
Para mudar um ambiente, no qual você identifique características semelhantes a estas, sugiro que você siga algumas recomendações, para sair da lógica da competição e entrar na lógica da colaboração (adaptado de Roos, 2024):
- Como aliados, devemos ouvir, aprender, desaprender e reaprender, cometer erros e continuar aprendendo — lembrar que mesmo que sejamos um especialista numa área de conhecimento, existem inúmeras outras áreas de conhecimento nas quais podemos ter oportunidades de aprendizado;
- Desligar laptops, celulares e prestar atenção ao que a pessoa está dizendo, exercitando a capacidade de escuta e compreensão — não há nada pior do que alguém que não te olha quando você está falando, demonstrando estar ocupado com outros assuntos. Além de falta de educação, esse comportamento parece uma desconsideração com quem fala;
- Evitar interromper a fala dos colegas — é importante controlar a ansiedade e dar espaço para que a pessoa que pediu a palavra possa elaborar seus pensamentos e expressar seus pontos de vista adequadamente;
- Ecoar e dar o devido destaque a ideia de um colega do seu time — sempre que eu pude, fiz questão de comunicar aos meus pares e superiores que um determinado trabalho havia sido desenvolvido por um colega ou subordinado. Isso cria uma conexão entre o time, e gera um sentimento de lealdade entre os colegas, já que eles percebem que não há intenção de apropriação de suas ideias ou entregas;
- Procurar garantir que a informação flua adequadamente entre todos os membros do time — muitas vezes as pessoas reportam se ressentir de não terem a informação adequada sobre os demais projetos e incorrer em retrabalho por não saber que uma determinada tarefa já havia sido endereçada a um colega e que já estava sendo tratada por ele. Vale evitar que esse tipo de situação aconteça;
- Estar disponível para elucidar dúvidas sobre as suas atividades e competências — esta é uma postura importante para um ambiente de colaboração, uma vez que cada membro do time pode ser detentor de uma competência que pode fazer a diferença para o desempenho dos demais e é sempre bom criar espaços para compartilhá-las;
- Utilizar o pensamento crítico e analítico [3] sempre que demandado a contribuir com uma determinada tarefa — aqui é importante não confundir o que é pensamento analítico (dissecar um problema complexo em partes menores para procurar entender sua origem e consequências, com precisão) do pensamento crítico (que considera os fatores que compõem o problema, busca fundamentá-los e justificar os argumentos, antes de emitir uma opinião).
Além dos cuidados acima, Roos (2024) sugere que estejamos atento para as micro agressões diárias (como o manterrupting [4], mansplaining [5]; bropriating [6]; gaslighting [7]) e atuemos para proteger quem tem menos voz. Isso implica em nos posicionarmos de modo firme, quando perceber que alguém está sendo interrompido ou menosprezado. Além disso, é preciso ter o cuidado de convidar pessoas sub-representadas para falar (percebendo especialmente as violências que envolvem relações de gênero, raça, PcDs, público LGBT e pessoas maduras) e incentivar as pessoas sub-representadas a participarem de oportunidades dentro dos times e da empresa. E, finalmente, sempre indicar alguém que faça parte de um grupo sub-representado para compor o time e garantir os aspectos de diversidade.
Por que isso é importante? Para estimularmos que os conhecimentos gerados e as ideias e inovações propostas contemplem as necessidades de todos os públicos, o que representará melhor as necessidades de todas as partes interessadas da organização.
O último passo proposto por Roos (2024) envolve um convite a nossa predisposição em mudar a vida de alguém significativamente, voluntariando-se como mentor desta pessoa, orientando, patrocinando projetos, dando oportunidades a estas pessoas à medida que elas crescem, participando como voluntário em projetos que atendam a jovens carentes de forma a ajudá-los com as suas competências, e comprometendo-se verdadeiramente para defender mudanças estruturais dentro da sua organização.
Considerações Finais
Trouxe esse exemplo de uma situação na qual não me saí bem, para demonstrar que a vida é um grande espaço de aprendizado. Muitos aspectos nas minhas relações de trabalho eu já mudei depois disso, e uma delas foi a introdução da conversa franca, mas cuidadosa, antes que a situação esquente e gere ansiedade e frustração em ambas as partes. Tenho procurado construir relações para além do trabalho, tornando os membros da equipe amigos com quem eu quero continuar convivendo, que confiam uns nos outros e que saibam que estaremos disponíveis quando eles precisarem.
Não há nada mais prazeroso do que encontrar alguém com quem você trabalhou e enxergar no rosto desta pessoa um sorriso verdadeiro e uma alegria espontânea por estar te revendo. Esse é o legado estimulante para se deixar para o mundo. E como diz o Nelson Mandela, “eu nunca perco. Ou eu ganho, ou eu aprendo”.
Notas
[1] Sobre Thinking Environment, saiba mais em aqui.
[2] Sobre o Diálogo Socrático, saiba mais aqui.
[3] Saiba mais sobre a diferença entre pensamento crítico e analítico aqui.
[4] Manterrupting — acontece quando um homem interrompe constantemente uma mulher, de maneira desnecessária, não permitindo que ela consiga concluir sua frase;
[5] Mansplaining — quando um homem dedica seu tempo para explicar algo óbvio a uma mulher, de modo didático, como se ela não fosse capaz de entender;
[6] Bropriating — quando um homem se apropria da mesma ideia já expressa por outra pessoa, levando os créditos por ela;
[7] Gaslighting — um dos tipos de abuso psicológico que leva a outra pessoa (especialmente mulheres) a achar que enlouqueceu ou está equivocada sobre um assunto, sendo que está originalmente certa.
Referências
- BALCEIRO, Raquel. O que a gestão do conhecimento tem a ver com a segurança psicológica? — Publicado em 06/10/2024. Disponível aqui.
- CLARK, Timothy R. Os quatro estágios da segurança psicológica: definindo o caminho para a inclusão e a inovação. Rio de Janeiro: Alta Books, 2023.
- ENDO, Brenda Donato. Segurança psicológica na prática corporativa. In: Livre para falar: como a segurança psicológica pode ser a principal alavanca para garantir a sustentabilidade do seu negócio. Organização do Instituto Internacional em Segurança Psicológica. São Paulo: Ed. Paraquedas, 2024.
- KERR, Cris. Como os vieses inconscientes impactam a diversidade nas empresas? (maio, 2021). Disponível aqui. Acessado em: 16/09/24.
- ROOS, Caterine. Como ser um melhor aliado no ambiente de trabalho. In: Livre para falar: como a segurança psicológica pode ser a principal alavanca para garantir a sustentabilidade do seu negócio. Organização do Instituto Internacional em Segurança Psicológica. São Paulo: Ed. Paraquedas, 2024.
Raquel Balceiro é Doutora em Engenharia de Produção com especialização em Gestão do Conhecimento, é professora da Pós-graduação Lato Sensu em Gestão do Conhecimento (MBKM) do CRIE — COPPE/UFRJ, e ministra as disciplinas “Mapeamento do Conhecimento” e “Capital de Ecossistema”.
Tem especial interesse pelos aspectos subjacentes das relações humanas que levam times de alto desempenho a cooperarem e colaborarem de modo excepcional ou não.