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Por que a prontidão para Mudança é uma premissa para Gestão do Conhecimento?

6 min readJun 19, 2024

Por Raquel Balceiro, D.Sc.

Fonte: Amy Hirschi on Unsplash.

Há alguns anos, fui demandada a preparar uma iniciativa de gestão do conhecimento para acelerar o processo de integração de novos empregados (onboarding) ao meu departamento. Esse departamento era constituído de 4 gerências de linha e, como empresa de economia mista, recebíamos novos empregados apenas quando da realização de concursos, o que não era tão frequente naquela época.

Os profissionais selecionados para integrar essas gerências eram muito capacitados, apresentavam um currículo excepcional e, até por esse motivo, tiveram um crescimento muito grande dentro da organização. Mas, na época, eram apenas novatos e, como novatos, eram assim tratados pela maioria dos demais empregados.

Apesar de ter algum tempo de casa, eu também era tratada como novata. A novata que tinha acabado de concluir o Doutorado em Engenharia de Produção. Em algumas culturas organizacionais, é comum que os empregados acreditem que aqueles que chegam mediante um concurso estão completamente “zerados” em termos de experiência profissional, “tem muito a aprender”... Naquele momento, eu já tinha ouvido coisas como “pato novo não mergulha fundo”, “mal chegou, já quer sentar na janela”, e isso me lembrava a Educação Bancária, tão criticada por Paulo Freire, que entende o aluno como uma folha em branco na qual serão “depositados todos os saberes” de que ele precisa.

Hoje, felizmente, a situação já é muito diferente, mas foram muitos anos até que a mudança finalmente começasse a acontecer.

Mas voltando à iniciativa, meu gestor havia solicitado uma solução que combinasse Rodízio Técnico com Tutoria.

A tutoria é uma relação estruturada entre dois empregados que visa ambientar novos empregados (na empresa ou em determinada área) de modo planejado. O acolhimento e o planejamento das atividades iniciais de apresentação da área são fundamentais para que a integração do empregado em um novo processo ocorra de maneira otimizada, humana e cuidadosa. Para a sua realização, é importante ter um plano estruturado de conhecimentos e informações que o novo empregado precisa estar exposto num determinado período, de forma que ele consiga em poucos meses, estar apto a atuar com autonomia no ambiente de trabalho.

Elegemos um tutor para cada novato dentre os empregados de cada gerência e definimos um plano de aprendizado que eles deveriam percorrer com o Rodízio. Na maior parte das gerências, eles foram orientados a procurar entender qual era o gargalo nas interfaces entre elas e como melhorar isso. Lembro que os novatos fizeram um trabalho brilhante. Passaram uma semana em cada gerência, conversando com todos os empregados que puderam e apresentaram uma proposta ao final de um mês.

O Rodízio Técnico é uma prática de Gestão do Conhecimento que visa permitir aos empregados conhecer todas as interfaces entre os subprocessos que compõem um processo, os fluxos de produtos tangíveis e intangíveis, como as entregas e a informação que por ele circula, os gargalos, os elementos facilitadores de sua execução, os pontos de melhoria etc. Quando definido o propósito do Rodízio Técnico, o empregado deve passar um período preestabelecido com a área que o receberá para que possa aprender e observar a execução das atividades de modo a oferecer, em seu relatório, um diagnóstico e um plano de ação para endereçar os pontos levantados.

Meu gestor queria que o final do processo fosse em grande estilo e reuniu toda a equipe (as quatro gerências juntas) na sala de reunião para assistir a proposta. A apresentação foi realizada em conjunto para os quatro gestores, e para o gestor dos quatro, como se estivessem em uma banca de um período probatório, com pompa e circunstância. Não que eu achasse necessário, mas foi assim que decidiram fazer.

Fonte: Kenny Eliason on Unsplash.

Todos receberam muito bem as propostas, menos um, que “questionou a competência dos novatos em fazer tal proposição absurda “, para a nossa surpresa.

Logo me veio em mente a frase do “pato novo não mergulha fundo”.

E, então, eu percebi, por meio dessa situação constrangedora, que a gestão da mudança é fundamental num processo de gestão do conhecimento, porque:

  • em nenhum momento dissemos que a proposta deveria ser aceita;
  • o que estava em jogo ali era a capacidade dos novos profissionais de analisar uma situação e apresentar uma solução viável e factível;
  • quem estava recebendo a proposta poderia encará-la como uma incrível oportunidade de melhorar o seu processo e não como uma afronta de um grupo de novatos que não entende nada da empresa.

Essa história me veio à mente lendo uma postagem do Alex Bretas. Eu fiquei encantada com um achado que ele repostou e que me remeteu àquela situação. Trata-se de um poema que havia sido postado pela Su Verri, do Ademar Ferreira dos Santos, escritor português.

Não cobiço nem disputo os teus olhos
não estou sequer à espera que me deixes ver através de teus olhos
nem sei tampouco se quero ver o que veem e do modo como veem os teus olhos
Nada do que possas ver me levará a ver e pensar contigo
se eu não for capaz de aprender a ver pelos meus olhos e a pensar comigo

Não me digas como se caminha e por onde é o caminho
deixa-me simplesmente acompanhar-te quando eu quiser
Se o caminho dos teus passos estiver iluminado pela mais cintilante das estrelas que espreitam as noites e os dias
mesmo que tu me percas e eu te perca
algures na caminhada certamente nos reencontraremos.

Não me expliques como deverei ser
quando um dia as circunstâncias quiserem que eu me encontre
no espaço e no tempo de condições que tu entendes e dominas
Semeia-te como és e oferece-te simplesmente à colheita de todas as horas.

Não me prendas as mãos
não faça delas instrumento dócil de inspirações que ainda não vivi.
Deixa-me arriscar o molde talvez incerto
deixa-me arriscar o barro talvez impróprio
na oficina onde ganham forma e paixão todos os sonhos que antecipam o futuro
E não me obrigues a ler os livros que eu ainda não adivinhei
nem queiras que eu saiba o que ainda não sou capaz de interrogar

Protege-me das incursões obrigatórias que sufocam o prazer da descoberta
e com o silêncio (intimamente sábio) das tuas palavras e dos teus gestos
ajuda-me serenamente a ler e a escrever a minha própria vida

(Ademar Ferreira dos Santos)

Tutores e os tutorados (assim como mentores e mentorados) devem refletir sobre o seu papel, entendendo que aquele que ensina também está em constante processo de aprendizado e que, quem aprende, também tem muito a ensinar, em função das perguntas que faz e da experiência de vida que traz consigo. Não podemos nos colocar na posição de únicos donos dos saberes, porque isso seria arrogante e pouco contribuinte para o desenvolvimento de ambas as partes.

Como consultora em gestão do conhecimento, hoje lembro aos envolvidos previamente que todos tem o que aprender e ensinar juntos e que não podemos desprezar o prazer da descoberta, como lifelong learners que somos. Preparar as equipes para a mudança tem sido um passo fundamental para o sucesso da gestão do conhecimento.

E você, o que tem feito de interessante na sua organização? Quais as suas descobertas recentes? Me conta, quero ouvir.

Ah, a APQC está querendo saber se você entende a prontidão para a mudança como competência importante para quem trabalha com Gestão do Conhecimento e, por esse motivo, está com uma pesquisa em curso que você pode acessar aqui. O prazo limite para a resposta é 28/06/2024.

Referências

  1. BRETAS, Alex. Um poema para nos lembrar da autonomia. Agosto, 2020. <https://medium.com/@alexbretas11/um-poema-para-nos-lembrar-da-autonomia-d63d3b87c859>.
  2. DAVENPORT, T., PRUSAK, L. Conhecimento Empresarial: como as organizações gerenciam o seu capital intelectual. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.
  3. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Ed. Paz e Terra. Rio de Janeiro, 2019.
  4. JACKSON, Norman. A Personal Manifesto to support Lifelong/Lifewide Learning. <https://www.lifewideeducation.uk/lifewide-learning1.html>.
  5. SOOK-CHUL, Kwak. Olá, Mentor: Histórias positivas de sucesso como fonte de inovação, motivação e transformação. São Paulo, Clio Editora, 2012.

Este artigo foi atualizado a partir de outro artigo da autora publicado originalmente no LinkedIn.

Raquel Balceiro é Doutora em Engenharia de Produção com especialização em Gestão do Conhecimento, é professora da Pós-graduação Lato Sensu em Gestão do Conhecimento (MBKM) do CRIE — COPPE/UFRJ, e ministra as disciplinas “Mapeamento do Conhecimento” e “Capital de Ecossistema”.

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Raquel Balceiro
Raquel Balceiro

Written by Raquel Balceiro

Praticante de Gestão do Conhecimento, facilitadora de equipes, educadora, professora de pós-graduação

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