O que o filme “Estrelas além do Tempo” nos ensina neste dia da Consciência Negra?
Por Raquel Balceiro, D.Sc.
Voltando ao tema do uso de materiais audiovisuais em sala de aula como uma forma de engajar os alunos, que abordei no meu último artigo (1), trago mais uma reflexão provocada por um filme muito interessante e ilustrativo. Falo nele mais adiante. Antes disso, preciso contextualizar a minha escolha.
Desde que começamos a disseminar para os colaboradores da empresa, seja em áreas administrativas ou operacionais, um conteúdo específico sobre o Combate à Discriminação, ao Assédio Moral e às Violências Sexuais, temos aprendido bastante sobre o tema, e tudo passa pelo entendimento dos Vieses Inconscientes.
Segundo Tayná Leite (2), os vieses inconscientes são normas sociais não escritas que determinam qual é o papel esperado que cada grupo de pessoas ocupe na sociedade. Eles surgem de preferências ocultas e suposições profundamente arraigadas que influenciam a forma como vemos a realidade. Como o próprio nome já diz, esse tipo de pensamento acontece sem a nossa consciência e está fora de nosso controle.
Vieses inconscientes podem surgir no seio da família, na escola, nos grupos da nossa rua, na nossa comunidade, na igreja, na faculdade e no ambiente profissional, reforçando preconceitos que trazemos ao longo da vida sem nos darmos conta.
Os vieses acabam por gerar associações que fazemos sem refletir e que resultam em julgamento, premissas e atitudes em relação aos outros. Essas associações são baseadas em estereótipos e preconceitos e afetam nossas ações e decisões sem que prestemos atenção.
Todos nós temos algum tipo de viés inconsciente, e isso não pode ser considerado bom ou ruim, se bem que a maior parte dos exemplos que darei aqui são de vieses com consequências ruins. Eles são uma leitura subjetiva da realidade, e o que nos afeta enquanto sociedade, é que esses vieses podem gerar preconceito, exclusão, discriminação e generalização de determinadas situações e grupos sociais. Por isso, quando ouvimos certas afirmações, como “mulher no volante, perigo constante”, “baiano adora uma rede, é um povo lento e preguiçoso”, “pessoas mais velhas não conseguem lidar com tecnologia, precisam se aposentar”, “branco correndo é atleta, negro correndo é bandido”, estamos falando de preconceitos arraigados que precisam ser permanentemente questionados para que deixem de existir.
Segundo o relatório “Vieses inconscientes, equidade de gênero e o mundo corporativo”, da ONU Mulheres (3), o viés inconsciente é uma relíquia universal e indesejada de nosso passado ancestral e pode se revelar de maneira insidiosa em várias situações cotidianas como, por exemplo, durante o favorecimento implícito de raça e gênero na contratação de alguém.
Para mostrar como isso acontece na realidade, escolhi o filme “Estrelas além do tempo”. Trata-se de uma história real de três cientistas negras que trabalharam na NASA, atuando na missão de colocar os Estados Unidos à frente da União Soviética na corrida aeroespacial e que se passa na década de 1960, durante a Guerra Fria. O pano de fundo do filme é o contexto da segregação racial nos Estados Unidos naquela época. O filme destaca alguns exemplos do que os negros precisavam enfrentar, como a existência de banheiro para brancos e negros (ou pessoas de cor, como seria a tradução para o termo em inglês colored people); as paradas frequentes pela polícia para inspeção, enquanto dirigiam seus automóveis; a existência de assentos para negros nos fundos dos veículos de transporte público, além de lugares e eventos em que pessoas negras não podiam entrar ou comparecer.
Katherine Johnson, interpretada por Taraji P. Henson, era uma brilhante “computadora”, que atuava com outras mulheres negras, também computadoras, em uma área segregada da NASA. Em função de seu desempenho excepcional, ela consegue ser promovida para um setor superior, atuando diretamente junto ao grupo que efetuava os cálculos e o planejamento para o lançamento dos astronautas norte-americanos no espaço. O objetivo ainda não era mandar o homem à Lua, apenas colocá-lo em órbita ao redor do planeta.
Neste momento, o filme retrata uma personagem que enfrenta uma série de desafios. Para começar, o prédio onde passa a atuar não oferece um banheiro para pessoas negras, o que demanda de Katherine longas caminhadas todas as vezes que precisa usar o banheiro (ela o faz no prédio da ala oeste, que fica a 800 metros de distância). Além disso, sua competência para a execução dos cálculos é frequentemente questionada pelos colegas, o que a leva a sentir-se subestimada por todos. Um momento desafiador no qual precisa mostrar sua competência ocorre quando tem que calcular, na frente de uma sala repleta de homens brancos, o local de reentrada na cápsula que seria enviada ao espaço.
Essa cena, na versão legendada, você confere aqui:
Mas te peço que preste atenção aos pequenos detalhes e às frases discriminatórias que são ditas pelos personagens brancos.
Katherine ainda tem que lidar com pequenos atos de preconceito, como ter uma garrafa térmica de café específica para ela. Esses aspectos do filme mostram os desafios que as mulheres ainda enfrentam nos dias de hoje, tendo que despender duas vezes mais esforço para demonstrar sua competência do que qualquer homem, e esse esforço ainda é maior quando se trata de uma mulher negra. São reflexo de vieses inconscientes de grupo que ocorrem quando acreditamos e reforçamos estereótipos sem base em fatos, partindo do pressuposto que se uma pessoa é mulher e negra, ela tem menos direitos e menos competência, do que qualquer outro profissional dentro da sala.
Você pode conferir a cena que retrata esse momento no clipe abaixo, legendado para o português.
Neste caso específico, estamos falando também de interseccionalidade, um outro conceito importante no dia de hoje. Segundo Bellagamba (2022) (4), “em termos simples, a interseccionalidade é a interação entre dois ou mais fatores sociais que definem uma pessoa. Questões de identidade como gênero, etnia, raça, localização geográfica ou mesmo idade não afetam uma pessoa separadamente. Ao contrário: combinam-se de diferentes formas, gerando diversas desigualdades (ou vantagens)”.
Veja como isso se traduz na cena a seguir, dublada, na qual o policial se espanta ao saber que há mulheres negras trabalhando no programa espacial da NASA. A frase final da personagem Mary Jackson, de Janelle Monaé, mostra como se sentiam: “Três mulheres negras perseguindo um policial branco na estrada”.
Para a Bellagamba, ao se tratar de questões como a equidade de gênero e a inclusão da diversidade de etnias, deficiências e orientações sexuais, assim como a inclusão de grupos vulneráveis (como idosos e migrantes), a interseccionalidade é um conceito inevitável a se considerar. A interseccionalidade é fundamental para entender as diferentes desigualdades que afetam as mulheres em nossa região quando falamos das principais lacunas de gênero.
Nesta cena, a personagem Mary Jackson dirige-se a um juiz para argumentar quanto ao seu direito de frequentar uma escola de brancos, um direito fundamental que era dado ao nascer a todo e qualquer cidadão ou cidadã brancos naquela sociedade, se essa fosse a sua ambição. Além de demonstrar o poder de argumentação da personagem, a cena mostra o quão humilhante poderia ser pedir por algo que hoje é um direito constitucional e à personagem só lhe é dado o direito de frequentar a faculdade à noite.
Você assiste à cena dublada neste link:
Quando se estabelece um Programa de Compliance de Gênero, e se procura dar atenção a questões voltadas a um ambiente que valorize a Diversidade, a Equidade e a Inclusão, é relevante pensar que cada ato da Alta Administração contamina a gestão média e os demais colaboradores, num processo lento de Gestão de Mudança. Isso é chamado tone at the top. O comprometimento das lideranças é a base do conceito de tone at the top, que deve ser claro e visível para todas as partes interessadas, já que ajuda a garantir o sucesso da implantação das políticas de compliance.
É preciso ter em mente que o processo de mudança organizacional passa por três camadas separadas: técnica, comportamental e cultural. Segundo Clark (2023, pg. 93) (5), muitas vezes começamos alterando todas as três camadas de uma vez, mas precisamos lembrar que cada camada muda em seu próprio ritmo.
Na camada estrutural, ou não humana, estamos mudando artefatos da organização, como políticas, procedimentos, ferramentas e tecnologia, que podem ser alterados rapidamente, quando se tem dinheiro e autoridade. Na camada comportamental, Clark salienta que mudamos a maneira como as pessoas se comportam à medida que interagem com a camada técnica, e entre si, de novas maneiras. O que vale apontar aqui é que simplesmente porque as pessoas estão se comportando de maneira diferente, não significa que elas queiram ou continuariam seguindo os novos padrões se tivessem escolha.
A terceira camada de mudança é a camada invisível, que consiste em valores, crenças e suposições. Em todas as unidades sociais, a camada social é a mais difícil de mudar, e normalmente é a que muda por último (Clark, 2023). A organização pode impor mudanças e exigir que as pessoas as cumpram, mas, e quando o gerente se afasta? Será que o nível de conformidade cairá imediatamente? Se não há motivação intrínseca para a mudança, haverá um retorno imediato aos padrões consolidados.
Em “Estrelas além do tempo”, há uma cena que mostra a importância do tone at the top, na qual o personagem de Kevin Costner, Al Harrison, retira a placa que classificava o banheiro como um banheiro para colored people. Ele já havia ensaiado uma mudança ao retirar a etiqueta da garrafa térmica de café. Mas a cena da placa é mais emblemática. A pergunta que fica é: será que as mulheres terão a coragem de usar qualquer banheiro quando Al não estiver por perto?
Você confere a cena em versão legendada aqui:
Eu poderia continuar elencando cenas com potencial de uso em sala de aula para discutir racismo e preconceito com os seus alunos. Ao invés disso, te convido a assistir novamente “Estrelas além do tempo” e encontrar, você mesmo(a), a cena que mais te toca.
Eu sou uma antirracista em construção. Minha expectativa é que reflitamos sobre esse tema e permaneçamos vigilantes no sentido de nos despirmos desses vieses todos os dias, abandonando esses velhos preconceitos que tanto nos afastam e atrasam como civilização.
Referências
(1) BALCEIRO, Raquel. O uso de recursos audiovisuais em sala de aula. Disponível em: https://medium.com/@raqbalceiro/o-uso-de-recursos-audiovisuais-em-sala-de-aula-136ff2cc2c9f. Consultado em 20/11/2023.
(2) LEITE, Tayná. Vieses inconscientes: como vencer esse desafio e promover a equidade de gênero nas corporações. WEIMPACT. Disponível em: https://www.weimpact.tech/blog-como-vencer-os-vieses-inconscientes/. Consultado em 20/11/2023.
(3) ONU Mulheres. “Vieses inconscientes, equidade de gênero e o mundo corporativo”. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/Vieses_inconscientes_16_digital.pdf. Consultado em 20/11/2023.
(4) BELLAGAMBA, Lucía Rios. O que é interseccionalidade e por que importa saber seu significado? — 2022. Disponível em: https://blogs.iadb.org/brasil/pt-br/o-que-e-interseccionalidade-e-por-que-importa-saber-seu-significado/. Consultado em 20/11/2023.
(5) CLARK, Timothy R. Os 4 Estágios da Segurança Psicológica — definindo o caminho para a inclusão e inovação. Rio de Janeiro: Ed. Alta Books, 2023.
Raquel Balceiro é Doutora em Engenharia de Produção com especialização em Gestão do Conhecimento, é professora da Pós-graduação Lato Sensu em Gestão do Conhecimento (MBKM) do CRIE — COPPE/UFRJ, e ministra as disciplinas “Mapeamento do Conhecimento” e “Capital de Ecossistema”.