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O que a gestão do conhecimento tem a ver com a segurança psicológica?

12 min readOct 6, 2024

Por Raquel Balceiro, D.Sc.

Imagem: Freepik.

Quando comecei a estudar a Gestão do Conhecimento, lá nos idos de 1995, todos os livros que eu lia sobre os projetos na área tinham a mesma estrutura. Contavam sempre com um capítulo no qual abordavam as premissas que sustentariam as ações de Gestão do Conhecimento e, dentre elas, o patrocínio da liderança, o exemplo, e a cultura de compartilhamento de conhecimento se destacavam.

Recentemente, a cultura organizacional começou a chamar a minha atenção, por conta do meu atual trabalho, que tem um enfoque em gestão da mudança e transformação cultural. A minha atividade está voltada ao Desenvolvimento e Conscientização da força de trabalho da minha empresa em temas como Ética e Integridade. Para realizá-la, eu parto do pressuposto de que as organizações são um recorte da cultura da sociedade em que operam, e elas (pessoas jurídicas) assumem posturas, tomam decisões e agem no ambiente de negócios de acordo com um conjunto de crenças e valores, que nem sempre representam fielmente as crenças e valores de seus colaboradores.

Para alinhar os valores dos indivíduos com os da organização, é essencial compreender que os valores de cada um e os seus princípios morais são moldados por diversos ambientes, como familiar, escolar, comunidade e profissional, desde que começamos a frequentar esses ambientes. Nem sempre os valores individuais estão alinhados com os organizacionais e, por isso, é preciso mostrar ao público-alvo que há alguma convergência, vinculando crenças e valores organizacionais especialmente ao propósito de cada um. Veja como a cultura organizacional é formada por meio da figura a seguir, na qual apresento o iceberg da cultura organizacional de Edgard Schein.

Fonte: Schein, Edgar R. Coming to a New Awareness of Organizational Culture. Sloan Management Review, Vol. 25, N. 2, Winter 1984, pp. 3–16.

Imagine que, nas comunicações internas de uma empresa, esteja escrito que a organização preza pelo trabalho em equipe, pela colaboração entre pares e unidades, e pela cooperação entre times, e incentiva que as metas sejam compartilhadas, de modo que seus empregados deem a devida relevância ao processo de gestão do conhecimento. Se, do lado oposto, as estruturas e sistemas administrativos incentivam a competição, é esse o resultado que teremos e que, provavelmente, emergirá no dia a dia das equipes. Desta forma, temos um paradoxo entre o discurso e a prática, o que dificulta a compreensão desses valores por aqueles que estão na base da pirâmide organizacional.

Essa diferença entre o que é dito e o que se pratica influencia na cultura de conhecimento que se pretende estabelecer

Para saber se as pessoas estão propensas a contar para as outras o que sabem sobre os processos e produtos daquela equipe, se elas se prontificam a ajudar as outras com frequência, se disponibilizam a sua rede de contatos em prol do grupo, se estão dispostas a expor suas opiniões e expressar suas ideias e preocupações, sem medo de sofrerem retaliações ou de serem isoladas pelo restante do grupo, é preciso conhecer bem a cultura da organização e entender como se configura o clima organizacional daquele ambiente (departamento, gerência, unidade organizacional).

Cabe aqui ressaltar que, a depender do tamanho da organização, o clima vai variar de uma unidade para a outra, e será marcado pela forma como o executivo e os gestores dessa unidade conduzem as atividades cotidianas, revelando como esse modelo de atuação e esse clima se traduzem em segurança psicológica para aquele time.

Adaptado de Gustavo Paulillo.

O que é e onde entra a Segurança Psicológica nesta história toda?

A segurança psicológica é a “crença compartilhada pelos membros de um time de que o time é, em si, um ambiente seguro para se tomar riscos interpessoais”, segundo a criadora do termo, Profa. Amy Edmondson, da Harvard Business School. Um ambiente com estas características promove um espaço seguro para que as pessoas possam ser elas mesmas, trazendo suas ideias e opiniões, seus erros e acertos, seus medos, vulnerabilidades e coragem, incentivando que a inovação de fato aconteça (Ansarah & Galvão, 2024).

Mas, e se, na verdade, as pessoas sentem que não podem falar no trabalho? Que suas preocupações são sempre desconsideradas? Que a sua experiência anterior de nada serve àquele time? Que elas nunca são “levadas à sério”? É claro que num ambiente assim é difícil esperar que a gestão do conhecimento ocorra como deveria, né? A Profa. Amy Edmondson fala sobre isso neste vídeo e correlaciona com a Sociedade do Conhecimento.

Veja a Profa. Amy Edmondson falando de Segurança Psicológica.

Para Timothy CLARK (2023), a segurança psicológica segue uma progressão baseada na sequência natural das necessidades humanas. Em primeiro lugar, todos os seres humanos querem ser incluídos; em segundo lugar, querem aprender; em terceiro, querem contribuir. E, por último, querem poder desafiar o status quo quando acreditam que as coisas precisam mudar. Fiz um resumo do modelo do Prof. Clark na figura a seguir.

Os quatro estágios da Segurança Psicológica. Fonte: Timothy Clark (2023).

Uma descoberta dos últimos tempos do mundo do trabalho relaciona a segurança psicológica com o desempenho e a inovação e, em contrapartida, a revelação de que a baixa segurança psicológica incorre nos custos incapacitantes de baixa produtividade e alto desgaste (Clark, 2023). Pesquisadores deste campo começaram a entender isso quando a Profa. Edmondson estudou e publicou sobre o Projeto Aristóteles, do Google, por meio do qual ela traduziu em palavras o que viria a chamar de Epidemia de Silêncio, trazendo luz para algumas regras veladas que levam as pessoas a não falar mesmo quando entendem que o que teriam a dizer poderia ser relevante para a equipe e para a empresa (Edmondson, 2020, pp. 35), quais sejam:

  1. Não critique algo que o chefe pode ter ajudado a criar.
  2. Não fale a não ser que tenha dados sólidos.
  3. Não fale se o chefe do chefe está presente.
  4. Não fale em grupo sobre qualquer coisa negativa relativa ao trabalho para evitar a humilhação do chefe.
  5. Expressar-se abertamente traz consequências à carreira.

Sendo assim, por que é tão importante saber como executivos e gestores conduzem suas atividades? Entender se eles estão abertos a receber perguntas, mesmo as mais desconfortáveis de responder, e se deixam todos igualmente à vontade para perguntar, nos leva a imaginar um determinado cenário, parecido com o descrito como seguro por Edmondson. Se eles não querem se dar ao trabalho de responder quaisquer perguntas e preferem que elas sequer sejam feitas, o cenário é completamente diferente.

Meu maior medo como CEO é que as pessoas não estejam me contando a verdade. — Mark Costa, CEO da Eastman Chemical

Mas, de verdade, o que acontece quando alguém se sente impedido de perguntar algo verdadeiramente importante, optando por manter-se calado diante de uma situação de tensão? Segundo Andréa NERY (2023), o medo de estarmos isolados em nossas opiniões, de nos expressarmos e sofrermos retaliação, de não sermos aceitos pelo grupo, dos julgamentos, rótulos e estereótipos provocam silêncio e omissão, e impedem que perguntas importantes sejam feitas. Quando as perguntas importantes não são feitas, deixamos de considerar a experiência de quem já passou por situação semelhante, o alerta de quem já lidou com um cliente difícil ou já identificou um nó importante (pessoa) dentro de uma rede de relacionamentos, por exemplo, e as considerações de quem já incorreu em erros, baseando-se em decisões semelhantes. Desqualificamos a experiência e o discernimento dos mais experientes em prol da manutenção de um status quo que nem sempre representa o melhor cenário para aquela organização.

Nery (2023) destaca que a falta de transparência nesse ambiente levará a:

  1. Decisões baseadas em informações incompletas (porque alguém quis falar, mas ninguém estava aberto a ouvir, ou só estava aberto a ouvir algo que confirmasse suas próprias hipóteses);
  2. Surgimento de conflitos não resolvidos, que gerarão um ambiente de tensão constante, com dificuldade de se chegar a um consenso (ainda mais prejudicado nos dias de hoje pelo fato de que a maior parte da comunicação é feita por escrito ou on-line, no qual não há o “olho no olho” proporcionado pelo contato presencial);
  3. Ausência de um feedback construtivo, que levará a falta de uma melhoria constante (porque a maioria das pessoas estarão sensíveis demais para entender que as sugestões são construtivas e desprovidas de um interesse oculto, dissimulado e subjacente);
  4. Ambiente castrador, no qual as pessoas se sentirão limitadas para propor ideias e abordagens inovadoras, impactando o potencial de crescimento e sucesso da empresa, o que levará ao aparecimento de dois grupos: um formado por pessoas que estarão satisfeitas em permanecer na sua zona de conforto, consumindo os recursos da forma que sempre foi feito ao longo do tempo, e os que estarão insatisfeitos e que, provavelmente, não permanecerão na empresa;
  5. Ambiente de apatia, no qual a pressão poderá levar as pessoas a se conformarem com a opinião dos outros e não expressarem a sua própria opinião, para que não sejam preteridos quando as boas oportunidades surgirem.

Um ambiente deste tipo certamente não induz ao compartilhamento de conhecimento, a prontidão para apoiar os colegas em suas atividades, a uma mentalidade voltada à aprendizagem e ao crescimento coletivo (talvez a um comportamento individualista e oportunista), nem a criação de novos conhecimentos e inovação incremental. Vamos ver algumas situações nas quais isso acontece?

Quando o silêncio e a omissão impactam negativamente no resultado do trabalho e no crescimento coletivo

Nesta seção, apresento algumas situações nas quais é possível perceber que a intenção é justamente perpetuar um ambiente de silêncio.

· Um gestor coordena uma equipe matricial e interdisciplinar e promove reuniões mensais para tratar dos avanços dos projetos. Na maioria das vezes em que ele apresenta uma proposta ao grupo, e alguém pede a palavra para questionar algum ponto do projeto, ele procura rapidamente encerrar a reunião. Com o tempo, as pessoas deixam de perguntar e de externalizar suas preocupações, e passam a estabelecer conversas em paralelo sobre o que acham que não irá funcionar. Em pouco tempo, um subgrupo em aplicativo de mensagem instantânea (do tipo WhatsApp) é criado para comentar os “rompantes” de tal gestor;

· Um líder de projeto tem a missão de engajar uma equipe de profissionais mais experientes do que ele, mas se recusa a realizar reuniões para escutar os envolvidos, saber quais as suas opiniões sobre as entregas esperadas e planejar em conjunto a execução do projeto. Ao invés disso, ele propõe as tarefas, os prazos, define os responsáveis e as entregas, sem permitir questionamentos ao planejamento, nem aceitar alterações no cronograma. Quando questionado sobre por quê age daquele jeito, ele simplesmente relata que “dá muito trabalho ouvir a todos”. Sabendo que ele faz o tipo que não está aberto a escutar, a equipe opta por executar as tarefas para as quais foi designada e assume que, caso algo dê errado, a responsabilidade será completamente do líder do projeto que se recusou a ouvi-los;

· Um alto executivo propõe uma determinada iniciativa estruturante, envolvendo grande número de empregados, sem um estudo prévio que avalie os prós e os contras e os impactos nos projetos que já vem sendo conduzidos pelos seus subordinados, recusando-se a ouvir as análises técnicas dos profissionais especializados na área. Quando questionado, ele assume uma postura “ditatorial” e afirma que “manda quem pode e obedece quem tem juízo”. Mesmo sabendo que o projeto tem grandes chances de falhar pelo meio do caminho, seus subordinados optam por se manter calados;

· Um gestor insiste em afirmar para a sua equipe que é uma pessoa disponível e que as portas de sua sala estão sempre abertas. No entanto, quando realiza reuniões de follow-up, organiza a agenda de tal modo que as perguntas sejam deixadas para o final, destinando a elas um tempo curto e próximo da hora do almoço, o que faz com que quase ninguém ouse perguntar.

Independente da posição na hierarquia de cada gestor, ou líder de projeto, podemos perceber nestes relatos onde estão as falhas e que, para obter engajamento dos participantes num determinado processo ou projeto, há que se deixar espaço para questionamentos, oferecendo real abertura para explicações, argumentações e contra argumentações. Caso isso não seja feito, é provável que os colaboradores adotem uma postura menos comprometida com o resultado e mais preocupada com a garantia do emprego ou trabalho em si.

Uma organização que espera o envolvimento de seus empregados com o trabalho deve efetivamente envolver a todos

Uma empresa que quer crescer e oferecer resultados positivos aos seus acionistas e demais partes interessadas, precisa estar comprometida em fazer melhor aquilo que ela faz todos os dias, diminuindo custos e modificando o impacto causado no seu entorno (com eficiência e eficácia).

Para que isso seja possível, é importante oferecer um ambiente de trabalho acolhedor, no qual as pessoas possam se manifestar, compartilhar ideias e opiniões abertamente, assumir riscos, admitir falhas, aprender com as suas falhas e com as dos demais, tendo discussões honestas e abertas.

Discutir certos assuntos, como diversidade, equidade, padrões de comportamento, vieses e preconceitos, e crenças estabelecidas é o caminho para começar a incluir os diferentes. Locais de trabalho nos quais as pessoas personalizam as discussões, as sugestões e as críticas, podem experimentar, segundo Carine Roos (2023), “perdas cumulativas”, tais como, “maior rotatividade, mais afastamentos (absenteísmo) e redução no engajamento da equipe”.

Há que se considerar também que, além do absenteísmo, gestores em empresas com um ambiente organizacional comprometido, também precisam lidar com o presenteísmo, isto é, com aqueles fatores psicossociais que afetam a qualidade do trabalho e se refletem em perda de produtividade. Eles podem ser causados por inúmeros fatores, dentre os quais, enumero alguns:

- responsabilizar o empregado por um volume excessivo de trabalho ou, no lado oposto, deixá-lo totalmente sem trabalho;

- designar o empregado para executar atividades aquém da sua capacidade ou alocá-lo sempre em atividades das quais ele não gosta;

- gerar um sentimento de insegurança, ou de não ser relevante para o grupo, ou querido, fazendo de tudo para que ele se sinta excluído;

- gerar um sentimento de não ter acesso às boas oportunidades, àqueles projetos que dão visibilidade junto aos superiores.

Para Nery (2023), em um mundo de incertezas e mudanças constantes, precisamos adotar uma postura de aprendizado constante, potencializando o capital humano e valorizando a diversidade (seja ela de gênero, etária, orientação sexual etc.). Quando conseguimos explorar a perspectiva de todos, trabalhando verdadeiramente juntos, conectados e em rede, podemos ampliar de fato as competências do time.

Considerações Finais

Trouxe esse exemplo para demonstrar alguns aprendizados, que condizem com o apresentado por Clark (2023):

  1. A necessidade de ser aceito precede a necessidade de ser ouvido — quando não se é ouvido, perde-se a motivação para trabalhar, e deixa-se de contribuir com o máximo de potencial com o qual se poderia contribuir;
  2. Ser ignorado é, muitas vezes, tão doloroso quanto ser rejeitado — a equipe que não percebe que o que aconteceu com um de seus membros, pode facilmente acontecer com os demais, tem uma percepção muito equivocada da realidade;
  3. Quando os seres humanos não conseguem obter aceitação ou aprovação um dos outros, ou não se sentem apreciados pela equipe, eles geralmente procuram atenção em substituição, ainda que seja por meio de ações destrutivas — não raro o profissional, rejeitado ou que não se sente querido, começa a errar ou deixar de alertar para pontos importantes do processo de trabalho, como uma forma de mostrar a equipe que ainda é relevante e deveria ser considerado.

É claro que uma equipe que atua em um ambiente disfuncional não vai compartilhar conhecimento, não vai criar novos artefatos de conhecimento (por medo ou insegurança em relação a forma como serão recebidos pelos demais integrantes), nem poderá desfrutar de um ambiente de aprendizagem e inovação. Ainda que cada integrante esteja aprendendo como agir em um lugar como esse, adotando seus mecanismos de defesa particulares, ele não se sentirá à vontade em compartilhar seus aprendizados com os demais.

No próximo artigo, abordarei outra situação de insegurança psicológica, para exemplificar como os vieses inconscientes, em especial, os de gênero, são nocivos ao modus operandi de uma equipe de alto desempenho.

Referências

  1. ANSARAH, Patrícia & GALVÃO, Veruska. Apresentação. In: Livre para falar: como a segurança psicológica pode ser a principal alavanca para garantir a sustentabilidade do seu negócio. Organização do Instituto Internacional em Segurança Psicológica. São Paulo: Ed. Paraquedas, 2024.
  2. CLARK, Timothy R. Os quatro estágios da segurança psicológica: definindo o caminho para a inclusão e a inovação. Rio de Janeiro: Alta Books, 2023.
  3. NERY, Andréa. Perguntas não feitas. In: Livre para falar: como a segurança psicológica pode ser a principal alavanca para garantir a sustentabilidade do seu negócio. Organização do Instituto Internacional em Segurança Psicológica. São Paulo: Ed. Paraquedas, 2024.
  4. KERR, Cris. Como os vieses inconscientes impactam a diversidade nas empresas? (maio, 2021). Disponível aqui. Acessado em: 16/09/24.
  5. ROOS, Carine. Como ser um melhor aliado no ambiente de trabalho. In: Livre para falar: como a segurança psicológica pode ser a principal alavanca para garantir a sustentabilidade do seu negócio. Organização do Instituto Internacional em Segurança Psicológica. São Paulo: Ed. Paraquedas, 2024.
  6. SCHEIN, Edgar R. Coming to a New Awareness of Organizational Culture. Sloan Management Review, Vol. 25, N. 2, Winter 1984, pp. 3–16

Raquel Balceiro é Doutora em Engenharia de Produção com especialização em Gestão do Conhecimento, é professora da Pós-graduação Lato Sensu em Gestão do Conhecimento (MBKM) do CRIE — COPPE/UFRJ, e ministra as disciplinas “Mapeamento do Conhecimento” e “Capital de Ecossistema”.
Tem especial interesse pelos aspectos subjacentes das relações humanas que levam times de alto desempenho a cooperarem e colaborarem de modo excepcional ou não.

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Raquel Balceiro
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Written by Raquel Balceiro

Praticante de Gestão do Conhecimento, facilitadora de equipes, educadora, professora de pós-graduação

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