Conhecimentos estratégicos e críticos: mapeá-los ainda é um problema para a sua empresa?
Como identificá-los, afinal?
Por Raquel Balceiro, D. Sc.
Recentemente, estive envolvida em um processo de mapeamento de conhecimento, utilizando uma metodologia diferente da que eu estou acostumada a disseminar em sala de aula. Esse novo modelo me levou a refletir bastante sobre a construção dos critérios para avaliação de conhecimentos e o quanto normalmente nos apegamos a critérios previamente estabelecidos para fazer o nosso levantamento, quando na verdade deveríamos nos ater às perguntas que precisamos fazer para que esse processo seja acurado.
Esta reflexão me lembrou uma frase muito famosa do Dave Snowden:
“If you don’t urderstand Why, you shouldn’t replicate a What”.
Sendo assim, fiz um breve exercício para ajudar a você que me lê a pensar nas perguntas e como elas se conectam aos modelos que vamos usar como referência.
Muitos pesquisadores costumam usar os adjetivos “estratégico” e “crítico” como sinônimos, por conta da tradução do termo em inglês “core”. No meu caso, procuro fazer uma distinção entre os conhecimentos estratégicos e os críticos. As duas definições são o meu ponto de partida:
a. Conhecimento estratégico é aquele que está diretamente relacionado a estratégia da unidade de negócios da organização, essencial para a execução dos processos chave, parte da competência essencial do negócio.
b. Conhecimento crítico é aquele que apresenta potencial de escassez em curto prazo no ambiente da organização e deve ser preservado e desenvolvido. Se não estiver disponível, pode atrapalhar o desenvolvimento das atividades.
Basicamente, você pode pensar assim: o conhecimento estratégico é aquele que eu preciso identificar, reter, proteger, adquirir, criar, desenvolver. O não estratégico, eu posso terceirizar. E se o conhecimento estratégico apresentar criticidade, eu tenho um problema a resolver em curto espaço de tempo. Mas, lembre-se, há conhecimento crítico que não é estratégico e conhecimento estratégico que não apresenta criticidade alguma.
Vamos ver como isso acontece?
Observe o gráfico a seguir.
Ele mostra que o nosso foco, em primeiro lugar, tem que ser nos conhecimentos muito estratégicos e que apresentam alto potencial de escassez ou criticidade (quadrante vermelho).
A partir desta compreensão, podemos estabelecer quais critérios serão úteis para entendimento dos conhecimentos estratégicos, que servirão de base para que eu construa os eixos para o meu diagnóstico. Escolhi aqui alguns deles para trazer para você:
1. Conhecimentos que garantem o alinhamento com a Estratégia da empresa: aqui, vamos identificar os conhecimentos que precisamos ter dentro da organização para que ela possa sustentar sua posição estratégica e que não devem ser terceirizados de forma alguma (esse é o “nosso tesouro”);
2. Conhecimentos que geram impacto no diferencial competitivo: neste critério, o que vamos identificar são os conhecimentos que tornam a nossa organização única no mercado, e que a concorrência tem dificuldade de replicar ;
3. Conhecimentos essenciais para a operação: aqui, devemos conhecer quais são os conhecimentos necessários para garantir qualidade, segurança e eficiência operacional;
4. Conhecimentos que mitigam os riscos críticos mapeados pela organização: neste critério, precisamos entender quais são os riscos críticos mapeados pela organização, sejam eles reputacionais, financeiros, de conformidade, de manutenção da operação, ambientais, cibernéticos, ou mesmo estratégicos (quando o que falha é o modelo de negócios escolhido).
Para identificar os conhecimentos críticos, adicionei mais dois critérios que tem a ver com tempo e disponibilidade. Vamos a eles:
5. Riscos associados à perda do conhecimento: a questão aqui é verificar se existem conhecimentos relevantes para a organização, restritos a um grupo muito pequeno de profissionais na organização;
6. Transmissão e retenção do conhecimento: neste critério, devemos levantar se o conhecimento é tácito, ou explícito e, em quanto tempo é possível preparar uma equipe para atuar com autonomia neste domínio de conhecimento.
Veja bem, eu construi os critérios a partir das “dores” que eu avaliei que a organização estaria enfrentando.
Para me auxiliar a levantar estes conhecimentos, eu elaborei um conjunto de perguntas que listo a seguir:
1. Alinhamento com a Estratégia da empresa
- Quais são os principais objetivos estratégicos da empresa nos próximos anos?
- Quais conhecimentos são essenciais para alcançar esses objetivos?
- Se minha área deixasse de existir hoje, quais conhecimentos impactariam diretamente a continuidade do negócio?
2. Impacto no diferencial competitivo
- O que diferencia nossa empresa no mercado? Quais conhecimentos sustentam essa diferenciação? Quais destes conhecimentos são de responsabilidade da minha área manter, proteger, disseminar, desenvolver?
- Quais conhecimentos tornam nossos produtos/serviços únicos e difíceis de serem replicados pela concorrência?
- Como a perda desses conhecimentos poderia afetar nossa posição no mercado?
3. Conhecimentos essenciais para a operação
- Quais são os processos-chave do meu setor? Quais conhecimentos são fundamentais para sua execução?
- Existem conhecimentos específicos que exigem anos de experiência para serem adquiridos?
- Que conhecimento nossa equipe possui que é essencial para garantir qualidade, segurança e eficiência operacional?
- Para que um novo colaborador se torne produtivo nessa área, qual o tempo médio necessário ao seu desenvolvimento?
- Esse conhecimento pode ser ensinado rapidamente, ou ele depende de vivência prática e longa experiência?
- Como garantimos que o conhecimento acumulado ao longo dos anos seja preservado e transferido de forma eficiente?
4. Conhecimentos que mitigam os riscos críticos da organização
- Quais são os riscos críticos de minha unidade ou setor (reputacionais, financeiros, de conformidade, de manutenção da operação, ambientais, cibernéticos ou estratégicos)?
- Existem conhecimentos específicos que podem impactar diretamente esses riscos, caso deixem de apresentar prontidão para aplicação?
- Que conhecimento nossa equipe possui que é essencial para garantir que a unidade ou setor não esteja exposta a esses riscos críticos?
- Quanto tempo precisamos para desenvolver os seus colaboradores nesses conhecimentos?
- Esses conhecimentos estão explicitados em procedimentos ou manuais?
5. Riscos associados à perda do conhecimento
- Se esses conhecimentos fossem perdidos hoje, quanto tempo seria necessário para reconstruí-los internamente?
- Quanto tempo leva para um profissional dominar esses conhecimentos a ponto de atuar com autonomia?
- Existe alguma dependência de poucos especialistas para a execução de atividades críticas?
- Existem conhecimentos que exigem anos de experiência para serem desenvolvidos?
- Como a falta desses conhecimentos pode afetar a operação e os resultados do negócio?
- Há riscos regulatórios ou de segurança associados à perda desses conhecimentos?
6. Transmissão e retenção do conhecimento
- Como esses conhecimentos são compartilhados hoje dentro da empresa?
- Existem mecanismos eficazes para transferir esses conhecimentos para novos profissionais?
- Quais dificuldades sua equipe enfrenta na preservação e disseminação desses conhecimentos?
- Existem documentações, treinamentos ou mentorias estruturadas para esses conhecimentos?
- Há desafios na retenção desses conhecimentos dentro da empresa?
- Que ações vêm sendo implementadas para garantir a continuidade desses conhecimentos no longo prazo?
Respondendo a estas perguntas, conseguimos ter uma noção dos conhecimentos estratégicos e quais deles apresentam certa criticidade. Por exemplo, considere que um destes conhecimentos estratégicos é de domínio exclusivo de um especialista, e este especialista é um profissional com mais experiência, que pode sair da empresa a qualquer momento ou aposentar-se. Neste caso, você pode considerar a necessidade de uma ação imediata para garantir o mínimo de retenção na organização, ainda que isso possa não acontecer por completo (em função de N fatores, como a maturidade da equipe que vai receber o conhecimento, o tempo para disseminação, a necessidade de registro etc.).
A partir daí, podemos nos valer de um modelo para avaliar os conhecimentos identificados. Eventualmente, posso ponderar estes critérios, dando mais peso a alguns em detrimento de outros, em função da característica do meu negócio.
Modelo de Análise para Priorização dos Conhecimentos Estratégicos e Críticos
A partir destes critérios, eu te proponho um modelo de Análise para Priorização dos Conhecimentos Estratégicos e Críticos e, para cada critério, você deverá refletir e estabelecer uma pontuação de 1 a 5, sendo que 1 representa o menor impacto/risco e 5 é o maior impacto/risco (coloque a pontuação onde estão os pins).
Se você precisa de uma fórmula para entender quais conhecimentos devem ser priorizados, aqui está ela:
Fórmula para Priorização (em função dos pesos escolhidos):
Nota Final = (Alinhamento x 0,25) + (Impacto x 0,20) + (Conhecimento essencial x 0,20) + (Proteção aos Riscos x 0,15) + (Perda de Conhecimento x 0,10) + (Disponibilidade x 0,10)
Entenda que os conhecimentos com maior nota devem ser priorizados para ações de retenção e transferência. E, se você resolver mudar o peso, lembre-se que deve alterar a fórmula.
Outro Modelo
Agora, se ainda assim você quer considerar outro modelo como ponto de partida, trago para você um de que eu gosto muito, que é o modelo de Davenport e Prusak (1998), e que analisa os conhecimentos em três eixos:
- Se o conhecimento é individual ou coletivo;
- Se o conhecimento é explícito ou tácito;
- Se a atividade na qual ele é aplicado é rotineira ou complexa.
Este modelo está descrito nesta imagem, que eu uso bastante em minhas aulas, e as questões adicionais que eu te mostro aqui podem ser combinadas às anteriores ou não.
Analisando cada um dos quadrantes, eu posso confirmar o meu diagnóstico anterior:
1. Individual x coletivo
- Esse conhecimento está centralizado em algumas pessoas ou é amplamente compartilhado?
- Se um especialista sair, o conhecimento permanece acessível na organização?
- O time aprende e desenvolve esse conhecimento colaborativamente?
- Há alguma prática em curso que pode garantir que esse conhecimento esteja preservado?
Como eu faço o diagnóstico?
- Se o conhecimento é prioritariamente individual → o conhecimento está concentrado em poucos indivíduos e sua perda pode gerar risco.
- Se o conhecimento é majoritariamente coletivo → o conhecimento já é amplamente compartilhado e documentado e a ausência de um dos membros da equipe não deve comprometer a atuação dos demais enquanto grupo.
2. Explícito x tácito
- Esse conhecimento pode ser facilmente documentado e transferido ou depende de experiência prática?
- Há materiais (manuais, procedimentos, sistemas) que registram esse conhecimento?
- Um novo colaborador conseguiria aprender esse conhecimento apenas lendo um documento ou precisaria de prática intensiva?
Como eu faço o diagnóstico?
- Se o conhecimento é prioritariamente explícito → está documentado, estruturado e pode ser acessado facilmente. Então, existem procedimentos, manuais, guias, checklists que facilitam o trabalho de quem fica, quando algum membro importante da equipe precisa se ausentar, e devem ser permanentemente atualizados, porque o conhecimento também fica obsoleto.
- Se o conhecimento é majoritariamente tácito → baseado na experiência, difícil de formalizar e exige aprendizado prático. É preciso garantir que haja alguma prática, como o shadowing, por exemplo, que ajude a disseminação deste conhecimento entre os membros do time.
3. Rotineiro x complexo
- Esse conhecimento é aplicado em tarefas padronizadas ou exige análise e adaptação constantes?
- O trabalho pode ser automatizado ou depende de julgamento humano?
- Pequenos erros nesse processo podem causar grandes impactos?
Como eu faço o diagnóstico?
- Se a atividade é rotineira → os colaboradores seguem procedimentos previsíveis e repetitivos, com pouca necessidade de adaptação.
- Se a atividade é complexa → eles dependem de sua criatividade, sua capacidade de julgar adequadamente e tomar decisões por vezes tão complexas quanto a atividade e de sua experiência na aplicação correta do conhecimento. Assim, é necessário estabelecer métodos e espaço em sua agenda para que eles possam praticar o pensamento crítico e analítico, além do desenvolvimento de novas ideias.
Como podemos usar esse diagnóstico?
Após classificar os conhecimentos estratégicos nesses três eixos, podemos:
- Identificar riscos → conhecimentos individuais, tácitos e complexos exigem estratégias robustas de retenção e transferência.
- Definir abordagens → conhecimentos explícitos e rotineiros podem ser documentados e automatizados mais facilmente.
- Priorizar ações → conhecimentos críticos e difíceis de transferir devem receber atenção especial em programas de mentoria, job rotation e treinamentos práticos.
Para facilitar a sua análise, apresento uma matriz que vai te auxiliar na classificação e na priorização dos conhecimentos que precisam ser trabalhados, com base em três eixos:
- Individual x Coletivo: Se o conhecimento está centralizado em algumas pessoas ou amplamente disseminado.
- Explícito x Tácito: Se o conhecimento pode ser documentado ou se depende de experiência prática.
- Rotineiro x Complexo: Se a aplicação do conhecimento segue um padrão previsível ou exige julgamento especializado.
Para cada combinação, podemos ter um conjunto de estratégias, e eu listo algumas delas, de modo não exaustivo:
1. Explícito & Rotineiro (fácil de documentar e transferir)
- Criar e manter manuais, procedimentos e bases de conhecimento, organizados em taxonomias criadas em conjunto pelo grupo.
- Automatizar processos quando possível.
- Treinamentos formais e e-learning.
2. Explícito & Complexo (exige compreensão profunda, mas pode ser documentado)
- Estruturar mentorias e treinamentos especializados.
- Desenvolver guias, manuais, procedimentos (playbooks) e casos práticos.
- Realizar programas de job rotation (Rodízio Técnico).
3. Tácito & Rotineiro (depende de prática e experiência)
- Criar dinâmicas de aprendizado baseadas em experiências reais.
- Incentivar a troca de conhecimento entre colaboradores.
- Implementar redes de conhecimento e comunidades de prática.
4. Tácito & Complexo (maior risco, difícil de transferir)
- Criar estratégias de retenção de talentos.
- Desenvolver programas estruturados de mentoria.
- Promover aprendizado contínuo por meio de experiências práticas e coaching.
Para conhecimentos tácitos e aplicados em atividades complexas, a gestão do conhecimento precisa focar em experiências práticas, interação social e aprendizado contínuo, pois esse tipo de conhecimento não pode ser facilmente documentado ou transferido por meio de manuais e treinamentos convencionais, como já vimos anteriormente.
Conclusão
Estes dois exemplos de modelos apresentados servem para te mostrar que o ideal é que você parta de um modelo que conhece bem, sobre o qual sente-se confortável em falar — sobre todos os seus aspectos — com os profissionais que te auxiliarão na tarefa. O que a gestão do conhecimento tem de bom é que ela permite essas adaptações, desde que você saiba para onde quer ir. Você pode certamente utilizar a sua criatividade para desenvolver o seu diagnóstico e conduzir as suas iniciativas. Bom projeto!
Ficou com alguma dúvida? Deixe no seu comentário, que pode ser insumo para um novo artigo.
Referências
BALCEIRO, Raquel. Aula de Mapeamento de Conhecimento. MBKM, CRIE — COPPE/UFRJ, 2024.
DAVENPORT, Tom; PRUSAK, Larry. Conhecimento Empresarial. Como as Organizações Gerenciam o Seu Capital Intelectual, Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1998.
Dave Snowden — How leaders change culture through small actions — https://youtu.be/MsLmjoAp_Dg?si=R5mdhPS-PQv5FO7a
Raquel Balceiro é Doutora em Engenharia de Produção com especialização em Gestão do Conhecimento, é professora da Pós-graduação Lato Sensu em Gestão do Conhecimento (MBKM) do CRIE — COPPE/UFRJ, e ministra as disciplinas “Mapeamento do Conhecimento” e “Capital de Ecossistema”.