A importância de um diagnóstico de prontidão para a Gestão do Conhecimento

Raquel Balceiro
9 min readNov 18, 2022

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Por Raquel Balceiro, D.Sc.

Hendrik Morkel on Unsplash

Muitas vezes, como consultora de Gestão do Conhecimento (GC), tenho a sensação de que os meus clientes, internos ou externos, não fazem ideia do que precisam quando demandam uma iniciativa específica. Há alguns anos, a GC, um boom na gestão da época, parecia servir para resolver qualquer problema ou conflito. Por este motivo, reconhecendo que eu preciso entender qual é o problema a ser resolvido, o contexto em que aquele grupo está inserido e, principalmente, a forma como eu posso sugerir uma prática ou projeto, desenvolvemos — eu e a equipe de GC onde eu atuei por muitos anos — um diagnóstico de prontidão para a GC que nos orientou em muitas situações difíceis.

Normalmente, iniciar a conversa com um diagnóstico de prontidão exige que expliquemos para o cliente em que fase do projeto estamos. O melhor a fazer é trazer uma metáfora, ou um exemplo, que consiga elucidar as suas dúvidas, e a história da organização da festa de casamento sempre pareceu muito esclarecedora.

Pense que alguém quer contratar uma empresa para organizar uma festa de casamento. A primeira fase do processo de organização deve ser levantar tudo o que é preciso para entregar a melhor experiência para noivos, familiares e convidados. É preciso saber quantos são os envolvidos (equipe e convidados), que tipo de festa será oferecida, em que local, o que será servido (comidas e bebidas), quanto tempo durará, que playlist os noivos querem que seja executada, se haverá algum tipo de dança específica, se será necessário contratar DJ ou banda etc.

No caso do diagnóstico de prontidão, a ideia é a mesma: entender de que tipo de empresa ou unidade organizacional estamos falando. Trata-se de uma empresa muito hierarquizada, ou com estrutura mais horizontal? É uma empresa que consta com um modelo de gestão mais tradicional ou mais avançado? De que setor é a empresa? Qual o tipo de organização: pública, privada ou mista? De quantos colaboradores estamos falando? Qual a cultura na qual estão inseridos? Como lidam com a tecnologia? Qual o contexto atual do setor, falamos de monopólio, oligopólio ou competição acirrada? Como estão os processos desta organização, mapeados, organizados, disseminados, padronizados? Como os líderes se posicionam em relação ao conhecimento: eles incentivam o trabalho colaborativo ou provocam um sentimento de competição entre membros das equipes?

Com a publicação da norma ISO 30401 — Knowledge Management Systems — Requirements, a necessidade de uma análise da prontidão para a GC ficou um tanto mais esclarecida, à medida em que se discute o Contexto da Organização, o papel da Liderança, os recursos que vão suportar as iniciativas de GC, e os aspectos relevantes para o planejamento de qualquer ação voltada a identificar, desenvolver, proteger, disseminar, aplicar, reutilizar conhecimentos da organização.

Chris J. Collison, Paul J. Corney e Patricia Lee Eng publicaram o livro The KM Cookbook, no qual apresentam o KM Chef’s Canvas 1.0, que contém uma série de questões (57 no total) que servem como um excelente diagnóstico de prontidão. Este canva está disponível para download no link e pode ser utilizado na sua organização, se você quiser começar por este caminho.

Figura 1 — KM Canvas — KM Cookbook (iso30401.com). Disponível em: https://www.iso30401.com/km-canvas, consultado em 17/11/2022.

Nosso diagnóstico, desenvolvido no ano de 2008, tinha um olhar bastante específico para seis partes do KM Chef’s Canva 1.0: Contexto Estratégico, Governança, Facilitadores (Papeis, Processos, Tecnologia e Infraestrutura), Liderança, Suporte e Cultura. Nós tínhamos clareza que nosso olhar buscava entender os elementos transacionais e os transformacionais, conforme a imagem a seguir.

Fonte: elaboração própria.

O modelo proposto a partir da Norma ISO 30401 é mais abrangente e procura entender de que forma a empresa pretende avaliar os resultados das iniciativas, como costuma medir o impacto de processos / projetos semelhantes nos resultados da organização, além de ações específicas para garantir a interação entre as pessoas e a criação de conhecimento coletivo e organizacional, além de se ater aos aspectos de codificação e curadoria, tão importantes nos dias de hoje nos quais a maioria dos colaboradores trabalha de forma remota ou híbrida.

Há que se ressaltar que a primeira versão desta norma foi publicada em novembro de 2018. Havia já a expectativa de que uma grande mudança se apresentaria em poucos anos, uma mudança já monitorada por futuristas, como Bill Gates. Mas a norma foi elaborada com o conhecimento que os especialistas possuíam naquela época, diante do contexto que enfrentávamos naquele momento. Não era possível imaginar que teríamos que nos adaptar tão rapidamente ao trabalho remoto e, por esse motivo, esses aspectos apresentados nos quadrantes “brancos” se fizeram ainda mais relevantes, além dos relacionados à infraestrutura e tecnologia, e o que abrange os recursos de suporte.

Elaborei uma tradução livre deste canva que pode ser aproveitado por você, caso queira começar a construir uma Estratégia de Conhecimento para a sua organização, gerência ou departamento.

Figura 3 — Tradução livre do KM Chef’s Canva 1.0, por Raquel Balceiro, 2022.

No primeiro quadrante, Contexto Estratégico, busca-se identificar:

Quão bem a GC está alinhada com a estratégia e os objetivos da organização?

Sabemos quem são nossos stakeholders internos?

Sabemos quem são nossos stakeholders externos?

Sabemos quais são as áreas de conhecimento chave para a organização?

O escopo do nosso sistema de GC atende ao nosso ciclo de vida do conhecimento e considera os elementos apropriados de nossa organização?

Na sequência, sobre a Governança, devemos investigar:

Temos um modelo de governança e estrutura em vigor?

Onde estão a política e os objetivos de GC da organização?

Temos um grupo responsável pela governança?

A abordagem segue os padrões de qualidade da organização?

Olhando para os Facilitadores, temos que analisar três elementos: Funções, Processos, e Tecnologia e Infraestrutura.

Sobre as Funções, o levantamento deve seguir os seguintes passos:

As pessoas sabem quais são suas funções e responsabilidades de GC?

Como nós sabemos disso?

As pessoas sabem como usar o sistema e as ferramentas de GC?

Como nós sabemos disso?

Sobre os Processos, precisamos levantar se:

Temos processos e métodos de GC definidos, documentados e aprovados?

Que recursos usamos para apoiar a KM?

Obtemos informações das partes interessadas sobre a eficácia de nossos processos de GC?

Sobre a Tecnologia e a Infraestrutura, é fundamental conhecer:

Quão bem nossa infraestrutura tecnológica e arquitetura física atendem às necessidades de GC?

Pedimos e ouvimos as opiniões das partes interessadas sobre as ferramentas de GC?

Os objetivos e questões de GC são considerados nas decisões de estratégia de TIC? Como?

Os quadrantes centrais deste canva visam investigar o cerne do processo de Gestão do Conhecimento e das premissas para a adoção da GC na organização. Envolvem Interação e Internalização, Cultura, e Codificação e Curadoria.

Com relação à Interação e Internalização, procuramos mapear:

O que existe para encorajar as pessoas a colaborar e compartilhar conhecimento?

Como as pessoas saberiam?

O conhecimento crítico é identificado e prontamente disponível quando necessário?

As pessoas são competentes e equipadas para colaboração virtual? O que existe para ajudar as pessoas a absorver conhecimento e aprendizado?

Sobre a Cultura, é importante esclarecer:

Entendemos como a GC se encaixa com nossa cultura e valores existentes?

Conhecemos e abordamos as barreiras ao compartilhamento e reutilização do conhecimento?

Como celebramos e reconhecemos os comportamentos corretos? Até que ponto a GC é vista como ‘uma parte natural de como fazemos as coisas aqui’?

Até que ponto a GC está envolvida nas transformações estratégicas e na agenda de RH/Desenvolvimento Organizacional?

Sobre Codificação e Curadoria, o foco deve ser levantar:

Que processos estão em vigor para a curadoria e atualização de nosso conhecimento crítico?

As pessoas sabem como localizar e acessar nossos principais documentos e recursos de dados?

Como nós sabemos? Temos uma maneira consistente e documentada de classificar, marcar e navegar no conhecimento?

Nossos ativos de informação e bases de conhecimento orientam as pessoas para os originadores e como eles podem ser contatados?

Na base deste canva, está a Liderança, e precisamos conhecer:

Como a alta administração demonstra comprometimento com a GC?

Quão bem os líderes comunicam a importância da gestão do conhecimento eficaz?

Os líderes apoiam ativamente a GC e definem claramente as expectativas para a equipe em funções não relacionadas à GC?

A administração fornece planejamento adequado e suporte para GC?

Além da Liderança, é importante entender como se estabelecem os mecanismos de Suporte para a GC:

Os recursos existentes são eficazes no apoio aos objetivos de GC? Estamos fornecendo às pessoas as ferramentas, treinamento e suporte para que possam realizar seus trabalhos, incluindo GC?

Como nós sabemos?

As pessoas sabem como a GC impacta o negócio?

Estamos atendendo às necessidades de GC de nossa equipe?

O canva também fornece orientações sobre como avaliar o Programa (ou os projetos) que serão adotados no quadrante Avaliação:

Como sabemos que nosso sistema de GC está funcionando?

Como saberíamos o que é bom?

Que medidas/indicadores temos para GC? Estamos medindo as coisas certas em GC? Como nós sabemos?

Já verificamos com nossos clientes/partes interessadas em como estamos?

Temos um plano para lidar com os riscos de GC?

Como identificamos oportunidades para a GC?

Finalmente, ele indica o caminho para pensar na Melhoria dos processos e iniciativas:

Como sabemos quando algo está errado ou poderia ser melhorado? Buscamos e ouvimos as opiniões das partes interessadas sobre como melhorar os processos e/ou ferramentas?

Que mecanismos temos para revisar e melhorar a abordagem, procedimentos e métodos de GC continuamente?

Nós ‘falhamos rápido e aprendemos’?

Como nós sabemos que somos uma Organização que Aprende?

Diante desta ferramenta, qual seriam os passos? Apresento algumas sugestões:

1. Procure responder a cada uma das perguntas, considerando a situação atual e a ideal para a sua organização;

2. Entenda que ações seriam necessárias para chegar nesta situação ideal;

3. Identifique o que é mais crítico para suprir estas lacunas. Você pode utilizar ferramentas como a Matriz GUT (Gravidade x Urgência x Tendência) para fazer esta análise;

4. Pense no esforço e no impacto de cada uma das ações pensadas para suprir as lacunas;

5. Defina o seu plano de ação e o cronograma associado.

E mãos à obra!

Muito provavelmente, algumas das ações que você definiu já são iniciativas de Gestão do Conhecimento. Outras, podem estar relacionadas com a “arrumação da casa antes da festa”, ou seja, podem estar vinculadas à criação (ou fortalecimento) de uma cultura de compartilhamento, ou à organização de um diretório de arquivos na nuvem compartilhado entre os membros da sua equipe, à comunicação dos objetivos que se quer atingir com esses projetos, ao estabelecimento de um ambiente de segurança psicológica para que as pessoas se sintam seguras em compartilhar seus erros e acertos, à organização do conhecimento tácito ou a explicitação de parte do conhecimento da equipe em procedimentos, documentos ou check-lists etc.

Se eu tenho uma lição aprendida para compartilhar com você, é essa: comece modularizando o seu projeto em pequenas partes. Busque pelos os ganhos rápidos, para que a equipe e o líder que patrocina a iniciativa (sponsor) vejam o valor do que está sendo feito e percebam a necessidade do seu engajamento. Defina um framework que deixe claro para todos os envolvidos onde se pretende chegar. E não esmoreça, porque os projetos de gestão do conhecimento costumam ser de longo prazo.

Até o próximo artigo.

Referências:

1. Norma ISO 30401 — Knowledge Management Systems — Requirements. Disponível em: < https://www.researchgate.net/profile/Raqeyah-Jawad-Najy/post/Knowledge_Management_System-ISO_304012018_is_it_effective_in_culture_change/attachment/608c560b6b953100014849a2/AS%3A1018370279350273%401619809803880/download/ISO-30401-2018.pdf>

2. COLLISON, Chris J.; CORNEY, Paul J.; ENG, Patricia Lee. The KM Cookbook: Stories and Strategies for Organisations Exploring Knowledge Management Standard ISO30401, Facet Publishing, 2019.

3. BALCEIRO, Raquel. Mapeamento de Conhecimento — disciplina MBKM. CRIE, COPPE/UFRJ, 2022.

Raquel Balceiro é Doutora em Engenharia de Produção com especialização em Gestão do Conhecimento, é professora da Pós-graduação Lato Sensu em Gestão do Conhecimento (MBKM) do CRIE — COPPE/UFRJ, e ministra as disciplinas “Mapeamento do Conhecimento” e “Capital de Ecossistema”.

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Raquel Balceiro

Praticante de Gestão do Conhecimento, facilitadora de equipes, educadora